Coisas que aquecem o coração: mais uma vez sou surpreendida por uma cena
matinal. Meu ônibus pára no sinal e eu estou à janela, perto de uma
calçada onde havia um senhor, morador de rua dormindo acompanhando do
seu au au. Ele dormia em cima de um pedaço de papelão, coberto por um
resto de manta quase se desfazendo. Uns sacos plásticos emaranhados eram
seu travesseiro e o cãozinho ao seu lado dormia em cima de um jornal
esticado.
Uma senhora, acompanhada por uma moça mais nova vestida de
branco, imagino que seja sua acompanhante, sai do portão do prédio quase
em frente onde o senhor dormia. Ela para, olha para a cena e aponta sua
bengala e cochicha com a moça. Cena não mais que incomum de pessoas
indignadas não só com a condição social e a dura realidade de alguns,
mas por vir esfregar isso à sua porta. Padrão de zona sul e de muitos
por aí! Ser condescendente com o sofrimento humano, desde que seja
longe. Porém, fui traída pelo meu pré-julgamento. A cena que eu
presenciei a seguir foi de amolecer meu coração adormecido e descrente
de boas ações de graça.
A senhorinha apoiada na sua acompanhante e na
bengala se aproximou do senhor, com muito custo para abaixar o tocou e o
acordou, disse meia dúzia de palavras obviamente inaudíveis para mim,
por conta dos meus fones e da distância, olhou para a moça que
prontamente retirou de uma sacola que carregava consigo um cobertor,
alguns agasalhos, um travesseiro e uma caminha para o au au. O senhor
ficou perplexo! Não deve ter tido muito bom tratamento e ter usufruído
de muita generosidade na sua condição vida afora. Ele disse algumas
palavras para a senhora e a moça que a acompanhava e levou as mãos ao
rosto, cobrindo e tentando abafar o choro. A senhora ainda abriu a
carteira e retirou um dinheiro que deu ao senhor, imagino que deva ser
para comprar comida ou algo assim. A senhora e o senhor trocaram mais
algumas meras e rápidas palavras e ela acenou para ele, virou as costas e
seguiu seu caminho, batendo papo com a moça. Ele, ainda incrédulo,
olhava tudo que tinha recebido, fazendo carinho no au au e com cara de
feliz.
E eu mais uma vez tomei uma boa e bela lição do acaso. Por estar
na hora certa e no lugar certo para presenciar momentos que não tem
preço. Vivemos tão rodeados e assombrados pela violência que tudo e
todos nos apresentam perigo. Quantos de nós não aperta o passo, segura
mais firme a bolsa e olha pra frente quando nos deparamos com moradores
de rua? Eu faço isso muitas vezes. Mesmo quando são pedintes e eu fico
tentada a ajudar vendo a condição, ainda sim, tenho medo, principalmente
se estou sozinha. Nos dias de hoje é muito difícil acreditar nas boas
intenções de estranhos. Porém, já tive várias provas de pessoas que
cruzaram o meu caminho do nada de que nem todas as pessoas que moram na
rua são dadas a marginalidade. Nem todos que se aproximam para pedir uma
ajuda estão prestes a nos assaltar ou cometer algum ato violento. Mas
por não conseguirmos distinguir quem é do bem e quem é do mal, às vezes o
justo paga pelo pecador, como se costuma dizer. Mais uma vez, um
estranho me dá lição de vida.
E eu que seguia meio chateada, de mal
humor e sem vontade de nada para o meu destino, deixei o desânimo se
esvair pela janela. Sempre há uma situação pior que a nossa, onde muitas
vezes reclamamos de barriga cheia sem de fator nos darmos conta do quão
abençoados somos. Hoje não é um dos dias mais frios, mas meu coração se
encheu de bons sentimentos e principalmente se aqueceu com a ternura e a
solidariedade daquela senhora. E rezo agora para que ela tenha uma vida
longa e que possa disseminar seus lindos gestos por mais pessoas, pelo
mundo. Porque é disso que a gente precisa, ter mais atitude por nós
mesmo, nossa própria vontade, independente de achar que a obrigação é do
governo e etc e tal. E ter mais amor ao próximo, mais solidariedade,
mais generosidade, mais coragem para nos aproximar desta dura realidade
crescente, apesar do medo e da desconfiança que já fazem parte...
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