2 de fevereiro de 2015

O calo que aperta dentro do sapato de cada um de nós


Cada um de nós tem uma pedra no sapato. Cada um de nós tem aquele famoso ditado "cada um sabe onde o seu calo aperta" dentro de nós. Cada um de nós tem sempre aquele assunto tabu, um fato não superado, algo que incomoda, fere, machuca. Algo que por mais que tentemos deixar de lado e fingir que não nos afeta, até na nossa indiferença se faz mais presente.

Desde os meus 10 anos de idade, essa pedra, esse calo, esse incômodo tem nome, sobrenome e endereço. E infelizmente um alto grau de parentesco comigo: meu pai. Aquele típico pai que se separa da esposa e abandona a ela, o lar e consequentemente os filhos. Literalmente, por 22 anos ele ligou o foda-se pra mim, pra minha vida, pras minhas coisas e sem peso na consciência e dó no coração seguiu sem olhar pra trás. Eu, ainda nova e mesmo depois com o passar dos anos e da idade, ainda procurava respostas, justificativas e motivos, alguma razão ou qualquer coisa que explicasse esse comportamento. Mas não achei nada. E na falta de algo concreto a gente cria. E eu criei: a culpada era eu. Por que? Sei lá! Só sei que era eu e ponto! Esse sentimento de rejeição tirado sei lá de onde me perseguiu por anos e me corroeu por dentro por muito tempo. Afetou outras áreas da minha vida que eu nem sabia que tinha que atribuir a isso. Era aquela pessoa risonha, feliz e de bem com a vida, mas... e deixava no escuro, oculto esse assunto que eu não sabia como lidar.

Depois de passar por um período ruim na minha vida, o início das crises de enxaqueca tensional, desencadeadas por uma uma vida totalmente estressante de trabalho acrescida por uma grande desilusão amorosa, fui indicada a fazer terapia, não só para saber o que desencadeava as minhas crises mas como a melhor maneira. E lá eu consegui trabalhar muita coisa, principalmente essa questão do meu pai. Que eu achava que era mínima e quando foi puxando, ô raiz longa.

Meses e meses a fio na terapeuta e grande parte do problema foi resolvido. Sim, aprendi a conviver com esse jeito indiferente, de não fazer questão dele. E aceitei que o problema era ele e não comigo. E que ele é desleixado com todos da família, não sou a sortuda da vez. Percebi que na verdade, ele é que tem mais problemas do que eu, mais carência, falta e medo do que eu. E quanto a mim, aprendi a me valorizar a partir do momento que fui vendo a vida que tinha e quantas pessoas estavam ao meu redor porque queriam estar, porque gostam de mim como eu sou e eu não preciso tentar agradar. Passei a não ter mais medo de decepcionar os outros ao assumir apenas uma postura minha. Passei a não deixar mais que me machucassem, mesmo sem querer. Passei a aceitar meus defeitos, minha limitações, o que não posso mudar. Passei a carregar a faixa "eu sou assim e ponto, Goste quem quiser, fiquem quem quiser". Passei simplesmente a olhar mais pra mim e menos para os outros e descobri tanta coisa legal aqui dentro, que embora algumas pessoas já tivessem percebido, para mim era totalmente desconhecido.

E o tempo passou e eu consegui conviver bem com essa nova descoberta. E consegui exorcizar meus fantasmas também. Por um bom tempo! Mas, aprendi também que esse tal calo, vira e mexe se faz presente e atormenta. E mesmo, na maioria das vezes conseguindo lidar bem com as situações, tem momentos que se está mais frágil que ainda dói, machuca. E percebe-se que nunca parou de doer, de incomodar. Eu que não dei mais importância por um tempo, até quando foi possível fingir que não existia. De um jeito diferente é verdade, mas ainda causa lá seus estragos. Porque, no final das contas, é difícil para um filho aceitar que seu pai ou mãe está vivo e não dá a mínima pra ele. Mas que sim, te procura esporadicamente, sabe-se lá porque, porque se preocupar com você e sua vida não é, mas para falar de futilidades, coisas banais, coisas aleatórias, e depois sumir do nada por dias, semanas, meses, anos. E do nada reaparece, e cobra porque não cumprimos com nossas obrigações de filho se importar. E cobra que você se importe e que você faça bem feito a sua parte, e que você seja um exímio filho e que aceite sem retrucar. Só que você já não é mais uma criança. E não se amedronta mais tão facilmente. Não se deixa influenciar por certas falas. E em todo esse tempo já passei por todos os tipos de fase, da negação, à raiva, à tristeza e à indiferença. Hoje, resta uma chateação por constatar que essas coisas nunca vão mudar, mas não passa disso. É a típica pessoa que "não fode e nem sai de cima!". Desculpem-me a linguajar. Mas é. Aquela que não quer estar perto, mas também não quer estar longe. Que não quer criar laços e se importar, mas não quer ser largada de mão. E esse tipo complica a vida de quem quer simplesmente seguir em frente.

Eu já me conformei com o jeito de ser do meu pai e como ele agirá pro resto da vida. O que por vezes mais me chateia nas coisas que ele faz ou fala, é que ele consegue se superar. Mesmo eu dizendo claramente que certas coisas que ele faz me chateiam, ele passa por cima como se nada fosse, sem a mínima consideração e respeito. E depois de um tempo se reaproxima arrependido de seus feitos, e mal dou uma semana e já tá ele lá fazendo de novo. Mas ao mesmo tempo que essa situação me chateia, estou cansada, cansada demais pra me indispor, cansada demais para brigar, cansada demais disso tudo pra fazer alguma coisa, no bem da verdade. Eu simplesmente cansei. Só que por mais que eu me esforce, não consigo ser totalmente indiferente. E não consigo não criar expectativas em cima de cada nova procura achando que ele foi contemplado com alguma dose de consciência. Mas nada, em vão!

Então eu respiro fundo e deixo passar, pois a irritação passa, a chateação passa, a frustração passa, a decepção passa, tudo passa. Normal. Mas tudo volta. Em dias como esses em que do nada, uma pequena frase ou um simples gesto que dizem muito pra mim são retratados como um nada pra ele. E são nesses dias que eu tenho certeza que por mais longe que eu esteja, certas coisas sempre vão me perseguir, pois sempre vão fazer parte de mim. Na maioria dos dias aprendi a lidar e viver sem. Mas é que nem uma caixinha de guardados, quando simplesmente abre a tampa, uma infinidade de momentos e pessoas saltam na nossa lembrança.

É respirar fundo e ter em mente que cada um carrega a cruz que aguenta carregar, nem demais e nem de menos. E que no fim, algo eu devo tirar disso tudo. Mas que não é fácil, ah não é não! Mas ir levando é o que me resta. Como já disse lá no início, acho que cada um tem sua pedra no sapato, seu calo no pé que aperta e tem que se livrar pra conviver com isso. E esperar, que os sapatos que calcemos não sejam apertados demais para que o incômodo não seja além da conta (porque incômodo é incômodo, por menor que seja, mas tem alguns que estão no limite do tolerável) e aí, a gente vai levando, levando, levando...

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